quarta-feira, 8 de junho de 2011

UM ESPETÁCULO QUE SACUDIU A MINHA ALMA

Sou aficionada por teatro que emociona. Que causa surpresa, admiração, alegria, tristeza... Que me arranca lágrimas, risos. Que me abre a boca. Que me traz espanto, até mesmo horror, repulsa ou medo. Por que não? Quanto à raiva, essa emoção eu dispenso. Ainda mais pagando ingresso... Já pensou? Sinceramente, dispenso. Sair de um teatro com raiva me faz resmungar e praguejar por um bom tempo. Incontrolavelmente, uma ranzinzice feroz toma conta de mim quando falo do tal espetáculo nas rodas de conversas, escangalhando o meu charme, minha feminilidade. Quanto prejuízo por causa de uma peça ruim, aff!!
Esclareço que não sou nenhuma especialista em teatro, muito menos uma intelectual devoradora de livros, ou mais uma hipócrita que não assume que se acaba de rir com humor comum bem interpretado, até mesmo com uma pitada de mal gosto... Nada disso. Bobagens ditas por um excelente performer podem valer o ingresso para mim. Divertem, provocam gargalhadas e isso, por si só, faz bem à minha saúde. Assumo!
Mas existem os espetáculos que marcam pela preciosidade... Estes permanecem na lembrança, transformam, enriquecem! E preciosidade, na minha concepção, vai além de aspectos bons isolados. Muito menos significa perfeição técnica, rebuscamento, performances e coreografias mirabolantes, figurino, cenário e maquiagem impecáveis, com surpresas a todo minuto... Tanta perfeição e riqueza reunidas correm sério risco de, por fim, cansar o público... É mais ou menos como aquelas pessoas que tentam parecer, a todo instante, lindas, inteligentes e boas, sabe? Chato! Preciosidade mesmo, genuína, envolve harmonia, profundidade e simplicidade. E essa preciosidade é a marca registrada de “História de Algum Lugar”. Um espetáculo que sacudiu a minha alma e as de muitos e muitos outros espectadores. Não tenho dúvidas quanto a isso.
Acompanhei à distância a história da “História” porque, a princípio, me interessei em participar e até me inscrevi para a audição. O espetáculo já se mostrava especial desde aquele momento, pois a chamada era aberta também a atores não-profissionais. Gente com pouca experiência em teatro, mas disposta a revelar seu potencial, sua emoção, sua expressão artística ou, até mesmo, a sua cara-de-pau (estirpe da qual eu faço parte). Fiquei excitadíssima com aquela oportunidade. No entanto, para a minha decepção, o dia do teste coincidiu com um compromisso inadiável. Infelizmente não pude nem concorrer a uma “vaga” na “História”. Paciência... Mas pelo capricho do blog, pela temática e pela audição aberta a principiantes, eu já estava ansiosa para assisti-la!
Após pouquíssimos meses a “História” entrou em cartaz num espaço novo da cidade. Já fui gostando da sala, não muito pequena, não muito grande, confortável, bonita e agradável. Cenário exposto. Inteligente e caprichadamente modesto. E a peça iniciou, mostrando a rotina peculiar de uma cidade interiorana. Cenas de um cotidiano vivido por beatas, donas de casa, prostitutas, homens simples, um vagabundo, crianças livres que brincam na rua, que vivem... Todos, em maior ou menor grau, interessadíssimos na vida alheia, como não poderia deixar de ser. Até aí, tudo muito previsível. Dei algumas risadas e senti, muitas vezes, estranhamento aos trejeitos exagerados e aos sotaques carregados. Tudo muito ameno. Tranqüilo, por assim dizer. Ao mesmo tempo, pitadas de pura poesia surgiam em meio ao mexerico, na ingenuidade e beleza dos diálogos e brincadeiras entre o menino e o vagabundo.
Reconheci naquela “trupe” artistas veteranos da cidade. Outros, mais jovens, igualmente brilhantes e, como eu já sabia, havia ali pelo menos uma principiante: uma ex-companheira de oficina de iniciação teatral. A bela e jovem atriz estava “possuída” por uma dona de casa desconfiada, mal-humorada e sovina. Incrível! Me diverti com as suas cenas! Performance de profissional, nossa! E assim fui notando um por um dos atores. Impressionantemente, todos bons, muito bem dirigidos.
Mas aquela amenidade foi acabando aos poucos. Naquela rotina banal foi se desenhando um monstro que, num crescente, incomodava muito. Portanto, sem perceber, eu fui parar ali, no meio da “História”. O interesse daquelas pessoas era em como uma idosa e uma menina, avó e neta, ambas enlouquecidas, se portariam ao chegar à estação e partir daquele lugar. Em como o humilde filho e pai estaria se sentindo naquele momento de separação, como se daria aquela despedida. Como seria a vida deles depois daquele episódio. Levantavam hipóteses, imaginavam a cena, lamentavam a sina desprovida de sorte do sujeito, fingiam indiferença. E a razão deste quadro, que ia se desvendando na trama, era ainda mais terrível. Uma desgraça completa.
Fui me encolhendo na poltrona, me reconhecendo em cada personagem. Me encontrei na inveja, na amargura, no despeito, na tristeza, na injustiça, no arrependimento, na brutalização, na fragilidade, na hipocrisia, na comiseração, na indignação, no amor que resiste ao tempo e à dor, na saudade, no desgosto, na solidão, na vergonha, na resignação. E minhas lágrimas vieram junto com as das enlouquecidas, da prostituta, do vagabundo embevecido de amor, dor e saudade, do homem simples e sofrido, tendo que se despedir das duas únicas pessoas que tinha na vida - dois espectros, inválidos e susceptíveis. Por fim, chorei com a beata que perde a razão frente à constatação do resultado da sua desgraça particular, que se alastrou pelas vidas alheias como uma peste.
E assim, o espetáculo mostrou-se grandiosos em seu conjunto. Pela riqueza e profundidade do texto (em um tempo em que os teatros encontram-se abarrotados de superficialidade, muitas vezes, financiadas por dinheiro público), pelas belas atuações, criatividade e simplicidade do cenário e figurinos (sem esbanjamento de recursos) e a maestria na condução da história, remetendo o público a esse turbilhão de emoções após um início singelo. O elenco era harmonioso, coeso, redondo, único. Uma energia só atravessava aqueles atores e isso foi o que me trouxe mais fascínio! Profissionais e iniciantes em total sintonia, certamente resultado de um trabalho árduo e minucioso daquela diretora e dramaturga, que, até aquele momento, era alguém que eu só conhecia de nome, mas que ganhou ali, de cara, toda a minha admiração e respeito.
E assim, “História de Algum Lugar” ficará para sempre na minha lembrança de espetáculos preciosos. E toda vez que falo dela (e volta e meia falo), sei que meu rosto ganha leveza e formosura. Minha voz torna-se doce, meu corpo se enche de movimentos entusiasmados e minhas palavras ensaiam até um quê de poesia. Impressionante como a beleza pode se multiplicar por causa de uma peça preciosa!!
Obrigada Áurea Liz e toda equipe! Muitíssimo obrigada por me proporcionarem tanto encantamento, por tanto tempo!


                                                            
                                                            Eni Braga
                                                                   Bióloga e Atriz

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