domingo, 26 de junho de 2011

NOSSOS ENCANTADORES E AS SUAS HISTÓRIAS (PARTE I)

                      MINHA HISTÓRIA COM A HISTÓRIA
                                                                                                Por Eliane Silvestre 

        Não é à toa que “nossa história” iniciou entre as linhas de texto de um dos maiores escritores que o Brasil já viu, Guimarães Rosa, e as linhas da imaginação desta obreira dionisíaca de tantas mangas arregaçadas na labuta da produção teatral de Brasília.
Quando, numa manhã, tarde, noite ou madrugada da vida, Áurea Liz sacou papel e caneta imaginários e passou a escrever uma história sem dono e ao mesmo tempo com tantos donos, naquele momento, importante para ela como dramaturga e para a arte como um todo, estava também um marco na minha história de vida. Recomeço. Que importa onde a história ocorreu!  A cidade não tem nome e nem precisa ter. Uma cidade não habitada e sim que nos habita e ganha novos nomes a cada nova morada. Cidade que está dentro de cada um de nós quer sejam a autora, a produção, os técnicos, os que sentaram pra assistir, os atores felizardos que com suas próprias histórias de vida abraçaram mais esta.
As coisas na minha vida são meio mágicas mesmo. Eu desejo e acontece. Há 3 anos, quando a minha tia-mãe querida foi embora, eu fui num templo. Lá, encontrei esta diretora que tinha perdido um ente querido também. Nós conversamos rapidamente. Eu fiquei morrendo de vontade de falar para ela que queria voltar a fazer teatro e se ela tivesse algum personagem para mim que me chamasse, mas não tive coragem.
Dois anos depois, quando recebi e-mail do nosso querido Gê Martu, divulgando um teste para a História de Algum Lugar (com texto e direção dela), em algum lugar do meu corpo surgiu a coragem. Uma coragem tímida, que se escondeu novamente em algum lugar. A coragem voltou à tona no final do prazo de inscrição, fim de domingo. Minha última experiência no palco havia sido há 10 anos. Nestes 10 anos, encenei apenas em aula na UNB e em eventos. Lembrei de época que tinha coragem de subir ao palco  sozinha para encenar monólogo. Mas na verdade não estava faltando coragem só para voltar ao palco. Estava faltando também coragem para viver. Eu estava numa época filosófica, questionando tudo e não vendo sentido em nada. Eu havia passado por 3 perdas: finalização de um ciclo profissional, morte de pessoa amada e separação. Esta perda tríplice manchava minha alegria habitual inicialmente de pequenas gotas e depois foi tomando conta e escurecendo meus dias. Lembrei então da beleza que é fazer teatro trazida pela boca sábia do amigo e diretor Humberto Pedrancini. Nunca tinha visto alguém descrever tão lindamente o que é fazer teatro, como o Humberto certa vez numa oficina. Entendi que estava ali uma oportunidade certa para um recomeço no teatro e de vida mesmo. “Quem sabe renasço” - pensei. E renasci pelas mãos desta história que, bem simbolizando a vida, traz em si drama, comédia e poesia. Não poderia ter sido trazida de volta à vida de melhor forma.
Fiz, então minha inscrição e vencido o primeiro passo, o segundo seria procurar um texto. Não menos angustiante a dúvida. Eu estava atordoada entre 3 opções. Na minha cabeça veio o Humberto novamente. Liguei. Não escolheu pra mim. Com sua habitual franqueza direta, ele disse para eu “cessar logo esta dúvida, escolher logo um e acreditar naquele”. Assim fiz e foi o melhor mesmo. Eu estava perdendo tanta energia na escolha em vez de estar direcionando esta energia à construção da personagem que me daria a mão para juntas enfrentarmos o desafio do teste que não era um teste comum. Se eu passasse, seria uma junção valiosa: volta ao palco e incentivo importante para volta à vida. Escolhi. A personagem era de Nelson Rodrigues, Geni, em Toda Nudez Será Castigada. Eu havia feito um trabalho com esta obra na disciplina do Prof. Marcus Mota, na UNB, onde traçava um estudo comparativo de  3 linguagens diferentes: teatro, literatura e cinema. Amei fazer o trabalho. Era uma boa escolha.


No dia marcado, eu lá estava, nervosa, mas acreditando. Além da personagem preparada, fazia parte do teste também criar um personagem a partir de características psicológicas e físicas traçadas pela produção. Nem cheguei a olhar para os jurados, eu estava muito concentrada. O texto que inventei ficou engraçado. Sei que jurados precisam passar imparcialidade, procurando não reagir e riram bastante com o personagem criado no improviso. Pela primeira vez, eu não achei que tinha ido mal. Desconfiava que tinha encenado bem. Sai satisfeita. Não porque gostei demais da transição que fiz  de prostituta Geni para uma senhorinha autoritária, mercenária e controladora. Ainda que tivesse encenado mal por nervosismo e independentemente do resultado, gostei mesmo foi de ter vencido minha insegurança. Eu já era vencedora.
Os dias seguintes foram torturantes de espera. Checava e-mail, nada. Checava o blog da peça, nada. Em 23/08/10, o primeiro sinal de fumaça no blog,  dizia que a produção já havia selecionado os 10 atores. “ Ai meu Deus! Estarei entre eles?” – pensei. Depois de alguns dias, divulgaram a primeira selecionada. “Felizarda!” - pensei. Permaneci na angústia por mais uns dias. Não sei bem quantas vezes ao dia eu chequei o blog. Foram tantas e tantas consultas, que quando divulgaram a segunda selecionada, pensei que era miragem. Uma mensagem bonita de boas vindas para mim. “Pra mim???????????? Eu???????? Não acredito!” - pensei. Era eu mesma. Existem um montão de Elianes Silvestres pelo mundo afora (vide Facebook). Mas nenhuma homônima havia feito o teste.
A covardia, a insegurança, a dúvida, a angústia da espera, tudo isto foi dando lugar à alegria, ao estudo, a debates de ideias, a novos e lindos amigos, a dias de ensaio com um elenco unido, à construção laboriosa da personagem, não livre de insegurança, mas uma insegurança prazerosa porque vinha com a certeza de que desembocaria em realização pessoal.
Mas o início foi delicado. Da tão esperada primeira reunião do elenco, saí um pouco temerosa. A personagem reservada para mim, por estar louca, me faria entrar em contato com um estado de desequilíbrio emocional que eu não me via forte no momento para entrar. Sai de lá preocupada. A diretora, como pessoa de sensibilidade, percebeu. Em seguida, uma atriz não pode permanecer, em virtude de outros compromissos. Vagou, então, outro personagem e a diretora me ligou, sugerindo. Eu adorei. Seria a delegada. A personagem era o contrário de mim. Nunca consegui dar ordens. A figura de uma autoridade, funcionária não só na cidade imaginária do espetáculo, mas também nos meus dias. Eu estava precisando disciplinar minha vida. Falar  grosso comigo mesma. “Vamos embora, Eliane , que a vida segue seu rumo!” Eu sabia também que a personagem suscitaria risos, já que a todo momento era chamada pelos demais de “esquisita”. Eu poderia brincar. E era o que eu estava precisando no momento. Reencontrar a Eliane alegre e passar alegria para o público.
Também passamos lirismo. Também fizemos chorar. Tecemos juntos o tapete onde se via a vida da uma cidadezinha do interior de Minas. Tapete bem tecido. Que o diga meu pai que, questionado por mim se realmente gostou, disse: “Gostei tanto que achei que passou rápido demais”. E foi assistir pela segunda vez porque se sentia na cidadezinha, disse ele. É quando o teatro acontece. Esta viagem da realidade que estamos inseridos para a fantasia, nos tirando de um dia muitas vezes sobrecarregado e nos jogando em outro espaço e tempo. É a realização de toda a equipe que trabalhou nesta mágica. Nada em meu fazer teatral me deu tanta alegria e marcou tanto, nem mesmo os prêmios recebidos por um espetáculo que participei, como uma discussão gerada na plateia, quando fiz uma cega,  se eu seria cega mesmo ou não.  

Voltemos a “nossa história”. Um elenco grande. Tudo era grande. Ah, como era grande! (rsrsrs) Grandes atores, grandes seres humanos que se tornaram grandes amigos. Como Deus foi bom comigo. De uma leva só trazer de volta o teatro e mais 20 amigos da melhor qualidade. Eu ia citar agora uma foto com uma gargalhada minha, no ensaio, mas bem neste ponto, quando escrevi “amigos da melhor qualidade” chegaram as lágrimas. Que venham porque significam sentimento verdadeiro. Mas que venha também a lembrança desta foto da gargalhada porque simboliza o prazer que foi participar deste trabalho e conviver com uma direção amorosa e competente e um elenco/produção/técnica de primeira em todos os sentidos. A gargalhada também simboliza meu prazer com a brincadeira do público comigo depois do espetáculo chamando-me de “esquisita”. Ou seja, este meu testemunho do que foi participar deste trabalho terminou em lágrimas, risadas e reflexão, do mesmo jeitinho que saem as pessoas quando assistem “História de Algum Lugar”. Coisa boa.

                                    ELIANE SILVESTRE deu alma à Delegada  
                                                  de História de algum lugar

quarta-feira, 8 de junho de 2011

UM ESPETÁCULO QUE SACUDIU A MINHA ALMA

Sou aficionada por teatro que emociona. Que causa surpresa, admiração, alegria, tristeza... Que me arranca lágrimas, risos. Que me abre a boca. Que me traz espanto, até mesmo horror, repulsa ou medo. Por que não? Quanto à raiva, essa emoção eu dispenso. Ainda mais pagando ingresso... Já pensou? Sinceramente, dispenso. Sair de um teatro com raiva me faz resmungar e praguejar por um bom tempo. Incontrolavelmente, uma ranzinzice feroz toma conta de mim quando falo do tal espetáculo nas rodas de conversas, escangalhando o meu charme, minha feminilidade. Quanto prejuízo por causa de uma peça ruim, aff!!
Esclareço que não sou nenhuma especialista em teatro, muito menos uma intelectual devoradora de livros, ou mais uma hipócrita que não assume que se acaba de rir com humor comum bem interpretado, até mesmo com uma pitada de mal gosto... Nada disso. Bobagens ditas por um excelente performer podem valer o ingresso para mim. Divertem, provocam gargalhadas e isso, por si só, faz bem à minha saúde. Assumo!
Mas existem os espetáculos que marcam pela preciosidade... Estes permanecem na lembrança, transformam, enriquecem! E preciosidade, na minha concepção, vai além de aspectos bons isolados. Muito menos significa perfeição técnica, rebuscamento, performances e coreografias mirabolantes, figurino, cenário e maquiagem impecáveis, com surpresas a todo minuto... Tanta perfeição e riqueza reunidas correm sério risco de, por fim, cansar o público... É mais ou menos como aquelas pessoas que tentam parecer, a todo instante, lindas, inteligentes e boas, sabe? Chato! Preciosidade mesmo, genuína, envolve harmonia, profundidade e simplicidade. E essa preciosidade é a marca registrada de “História de Algum Lugar”. Um espetáculo que sacudiu a minha alma e as de muitos e muitos outros espectadores. Não tenho dúvidas quanto a isso.
Acompanhei à distância a história da “História” porque, a princípio, me interessei em participar e até me inscrevi para a audição. O espetáculo já se mostrava especial desde aquele momento, pois a chamada era aberta também a atores não-profissionais. Gente com pouca experiência em teatro, mas disposta a revelar seu potencial, sua emoção, sua expressão artística ou, até mesmo, a sua cara-de-pau (estirpe da qual eu faço parte). Fiquei excitadíssima com aquela oportunidade. No entanto, para a minha decepção, o dia do teste coincidiu com um compromisso inadiável. Infelizmente não pude nem concorrer a uma “vaga” na “História”. Paciência... Mas pelo capricho do blog, pela temática e pela audição aberta a principiantes, eu já estava ansiosa para assisti-la!
Após pouquíssimos meses a “História” entrou em cartaz num espaço novo da cidade. Já fui gostando da sala, não muito pequena, não muito grande, confortável, bonita e agradável. Cenário exposto. Inteligente e caprichadamente modesto. E a peça iniciou, mostrando a rotina peculiar de uma cidade interiorana. Cenas de um cotidiano vivido por beatas, donas de casa, prostitutas, homens simples, um vagabundo, crianças livres que brincam na rua, que vivem... Todos, em maior ou menor grau, interessadíssimos na vida alheia, como não poderia deixar de ser. Até aí, tudo muito previsível. Dei algumas risadas e senti, muitas vezes, estranhamento aos trejeitos exagerados e aos sotaques carregados. Tudo muito ameno. Tranqüilo, por assim dizer. Ao mesmo tempo, pitadas de pura poesia surgiam em meio ao mexerico, na ingenuidade e beleza dos diálogos e brincadeiras entre o menino e o vagabundo.
Reconheci naquela “trupe” artistas veteranos da cidade. Outros, mais jovens, igualmente brilhantes e, como eu já sabia, havia ali pelo menos uma principiante: uma ex-companheira de oficina de iniciação teatral. A bela e jovem atriz estava “possuída” por uma dona de casa desconfiada, mal-humorada e sovina. Incrível! Me diverti com as suas cenas! Performance de profissional, nossa! E assim fui notando um por um dos atores. Impressionantemente, todos bons, muito bem dirigidos.
Mas aquela amenidade foi acabando aos poucos. Naquela rotina banal foi se desenhando um monstro que, num crescente, incomodava muito. Portanto, sem perceber, eu fui parar ali, no meio da “História”. O interesse daquelas pessoas era em como uma idosa e uma menina, avó e neta, ambas enlouquecidas, se portariam ao chegar à estação e partir daquele lugar. Em como o humilde filho e pai estaria se sentindo naquele momento de separação, como se daria aquela despedida. Como seria a vida deles depois daquele episódio. Levantavam hipóteses, imaginavam a cena, lamentavam a sina desprovida de sorte do sujeito, fingiam indiferença. E a razão deste quadro, que ia se desvendando na trama, era ainda mais terrível. Uma desgraça completa.
Fui me encolhendo na poltrona, me reconhecendo em cada personagem. Me encontrei na inveja, na amargura, no despeito, na tristeza, na injustiça, no arrependimento, na brutalização, na fragilidade, na hipocrisia, na comiseração, na indignação, no amor que resiste ao tempo e à dor, na saudade, no desgosto, na solidão, na vergonha, na resignação. E minhas lágrimas vieram junto com as das enlouquecidas, da prostituta, do vagabundo embevecido de amor, dor e saudade, do homem simples e sofrido, tendo que se despedir das duas únicas pessoas que tinha na vida - dois espectros, inválidos e susceptíveis. Por fim, chorei com a beata que perde a razão frente à constatação do resultado da sua desgraça particular, que se alastrou pelas vidas alheias como uma peste.
E assim, o espetáculo mostrou-se grandiosos em seu conjunto. Pela riqueza e profundidade do texto (em um tempo em que os teatros encontram-se abarrotados de superficialidade, muitas vezes, financiadas por dinheiro público), pelas belas atuações, criatividade e simplicidade do cenário e figurinos (sem esbanjamento de recursos) e a maestria na condução da história, remetendo o público a esse turbilhão de emoções após um início singelo. O elenco era harmonioso, coeso, redondo, único. Uma energia só atravessava aqueles atores e isso foi o que me trouxe mais fascínio! Profissionais e iniciantes em total sintonia, certamente resultado de um trabalho árduo e minucioso daquela diretora e dramaturga, que, até aquele momento, era alguém que eu só conhecia de nome, mas que ganhou ali, de cara, toda a minha admiração e respeito.
E assim, “História de Algum Lugar” ficará para sempre na minha lembrança de espetáculos preciosos. E toda vez que falo dela (e volta e meia falo), sei que meu rosto ganha leveza e formosura. Minha voz torna-se doce, meu corpo se enche de movimentos entusiasmados e minhas palavras ensaiam até um quê de poesia. Impressionante como a beleza pode se multiplicar por causa de uma peça preciosa!!
Obrigada Áurea Liz e toda equipe! Muitíssimo obrigada por me proporcionarem tanto encantamento, por tanto tempo!


                                                            
                                                            Eni Braga
                                                                   Bióloga e Atriz