segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

O LUGAR FOI CERTEIRO, BEM NO ALVO



Apaguei as luzes, saí de casa e fui ao teatro. Sabia e não sabia prá onde estava indo. “História de algum lugar” era, até aquele momento, uma chamada vaga, um destino impreciso. Aí mesmo é que morava o risco. O lugar foi certeiro, bem no alvo. Fui parar no olho do mundo, no buraco da fechadura, vendo passar, no espelho vivo do palco, a natureza do humano que somente com maestria a arte pode revelar.   
Imersa ali, em um texto que costurava humor e poesia, mostrando aquela potência que é da nossa linguagem, através de personagens maravilhosamente construídos, interpretados e dirigidos, vi a vidinha prosaica do nosso arcaico interior despindo, prá valer, a alma da gente. Um prazer estético imenso contrastando com emoções nostálgicas de um tempo e de um lugar perdido em um tipo de memória que parece ser universal. Se vivido de fato ou não, de todo modo, parece ser uma memória latente. Eu acho que quem não guarda no imaginário algum arcaico interior não pode ver em perspectiva.    
Olhei pro lado e tive a nítida impressão que eu não estava sozinha, que ninguém ali na platéia foi poupado da emoção de se saber representado simultaneamente em tantos personagens, aqueles tipos “demasiadamente humanos”, antagônicos, conflituados, imprescindíveis um para o outro, intensos, movidos àquilo que move a todos e todas: dor, maledicência, compaixão, culpa, insanidade, desejo, remorso, amor, lucidez, humor. Só não se viu indiferença entre aqueles seres tão arquetípicos plantados naquela cidadezinha. Beatas, putas, comerciantes, loucas, mendigos, velhos, crianças e outros (elenco numeroso e grande em talento), todos entrelaçados numa totalidade.
O enredo, tão bem ritmado, encenava a despedida da mãe e da filha de Baiô, as loucas da trama. Ele, um comerciante que perdeu a mulher, sacrificada pelo moralismo cristão que, ao mesmo tempo, sustentava e ameaçava a fantástica organicidade daquela gente.
Diz-se, em psicanálise, que a arte dá notícia do humano e que a identificação do público com a obra de arte é um acontecimento psíquico que garante o seu êxito. Mas, como um artista consegue em nós os efeitos emocionais provocados pela sua criação é uma pergunta que Freud se fez, e mal respondeu, embora seu texto sobre o assunto mereça crédito exatamente por deixar aberta a questão.
Explicar, não carece. Está tudo ali: uma cena caipira, na estação do trem, decifrando, com a graça da prosa, o nosso avesso, desbancando os esforços da filosofia, da psicologia, e outras gias que pretendem nos saber - uma diabrura que certamente fez o gênio do teatro gozar de alegria.
Um abraço, um brinde, uma salva de palma e uma prece para vocês, para o teatro de verdade.
  
Tarcila del Castro Machado